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Normas Regulamentadoras, exagero ou necessidade?

Pensamento em tríade

Marcia Bandini – médica especialista e professora em Medicina do Trabalho, com doutorado pela FMUSP
marciabandini@gmail.com

Gosto do número três. Nada a ver com numerologia, coisa em que não acredito, sem desrespeitar quem veja nisso algum sentido. Gosto da simplicidade e da força do número. É que na física, três pontos de apoio são suficientes para dar estabilidade a uma superfície. Na geometria, três pontos no espaço determinam um plano. Por isso, gosto de planejar minhas aulas e organizar meus artigos com um pensamento em tríade. É o que proponho hoje.

Na promoção do trabalho saudável e seguro, nós, profissionais de saúde e de segurança, costumamos apoiar nossas estratégias e ações em um tripé técnico, regulatório e de fiscalização. O pilar técnico-científico representa o avanço do conhecimento e as boas práticas como balizadores de instruções, recomendações, orientações que nos ajudam a melhorar as condições e ambientes de trabalho. Instituições técnicas nacionais e internacionais como, por exemplo a Fundacentro ou o NIOSH (National Institute of Occupational Safety and Health) são alguns exemplos de entidades que têm publicações respeitadas sobre Saúde e Segurança no Trabalho. A regulamentação é fundamental para que empregadores e trabalhadores saibam o que é minimamente exigido para atender a saúde e a segurança. Seu cumprimento acontece de acordo com leis e normas que devem, sempre que possível, ser apoiadas no melhor conhecimento técnico-científico disponível na sociedade. O rito para sua elaboração, em especial para as Normas Regulamentadoras, será discutido a seguir. A regulamentação exerce um papel fundamental entre o conhecimento e a fiscalização.

Já a fiscalização é a avaliação da aplicação prática de uma regulamentação, seja por verificação in loco, por entrevistas ou análise documental. Quase como uma auditoria, por isso, o profissional envolvido é o auditor fiscal do Trabalho. Caso não haja cumprimento dos requerimentos legais exigidos, cabe a aplicação de notificações e/ou multas. A penalidade a respeito de um não cumprimento de uma regulamentação de saúde e de segurança não é simplesmente punitiva, mas também educativa. Assim, esperase fechar um ciclo de melhoria para que o direito ao trabalho digno (saudável e seguro) seja respeitado.

ESCLARECIMENTOS

Recentemente, declarações de algumas autoridades na mídia levantaram a discussão sobre as Normas Regulamentadoras do Brasil, sugerindo que as NRs são exageradas, ultrapassadas, políticas ao invés de técnicas. Estava armado um novo debate entre diferentes correntes ideológicas. As notícias divulgadas me motivaram a pensar mais sobre o assunto. Quando vejo que respeitados representantes dos empregadores concordaram com o excesso das declarações – afinal, ninguém realmente acredita que temos 90% de “gordura” nas NRs – acho que o momento é de reflexão.

Requerimentos legais a respeito de saúde e segurança existem em quase todos os países, descontados aqui aqueles em que não há o grau mínimo de desenvolvimento. No Brasil, país considerado emergente, as Normas Regulamentadoras foram organizadas e instituídas oficialmente em 1978, embora alguns temas nelas inseridos tenham sido tratados anteriormente. Nossas NRs podem ser comparadas aos standards da OSHA (Occupational Safety and Health Organization), nos Estados Unidos. Para discutir melhor sua elaboração e propósito, proponho uma nova rodada de abordagem em tríade: os padrões internacionais, o modelo tripartite e a necessidade de atualização. E neste plano definido pelos três pontos, gostaria de desconstruir dois mitos e reforçar uma necessidade.

• Mito 1: O Brasil tem normas demais!

Normas Regulamentadoras não são jabuticaba, remetendo ao dito popular de que a fruta só existe no Brasil (algo que esta colunista contesta) e não nascem da cabeça de uma pessoa. A regulamentação brasileira de saúde e de segurança usa a Organização Internacional do Trabalho como referência, em especial porque o Brasil é um país membro desta organização. Das muitas convenções da OIT, podemos destacar a de número 155, que trata especificamente da segurança e saúde dos trabalhadores, ratificada no país em 1992, eaConvenção OIT nº 161 que trata dos Serviços de Saúde do Trabalho, ratificada em 1990. 

Outras convenções tratam de atividades econômicas específicas como, por exemplo, da construção (C167) e da mineração (C176). Após a ratificação no Brasil, as convenções são referências para a elaboração de leis e normas. Algumas ainda aguardam ratificação como a Convenção 187, sobre o marco promocional para a Segurança e Saúde no Trabalho. Ou seja, nossa regulamentação está alinhada com mais de 200 países no mundo e, ainda assim, temos coisas a fazer.

• Mito 2: Um grupo técnico deve ser responsável pela elaboração de normas.

Embora a regulamentação deva ser embasada no melhor conhecimento técnico-científico disponível para a sociedade atual, a aplicação prática daquilo que é técnico depende de muitos fatores – sociais, econômicos, políticos, temporais e geográficos. Por isso, o que pode e deve ser feito para promoção e proteção da saúde e segurança dos trabalhadores precisa ser discutido entre as chamadas “partes interessadas”. 

Em meados da década de 1990, o Brasil adotou o modelo tripartite, proposto pela OIT e vigente até hoje em nosso país. Assim, a CTPP (Comissão Tripartite Paritária Permanente) desempenha um papel de alta relevância ao colocar representantes de empregadores e trabalhadores para desenvolver e aprovar uma NR, com o apoio de grupos técnicos. Desde a adoção do tripartismo no Brasil, os conflitos diminuíram e avançamos na regulamentação. Se é verdadeiro que o modelo pode ser aprimorado, é ainda mais verdade que priorizar o técnico, em detrimento do negocial, tende a criar atritos e, não necessariamente, soluções viáveis para todos os envolvidos.

• Necessidade: É preciso atualizar sempre!

A promoção e proteção da saúde e da segurança dos trabalhadores é um processo dinâmico, seja porque o conhecimento técnico-científico traz possibilidades mais atualizadas, ou pela necessidade de harmonizar o que existe com aquilo que é novo, ou porque ainda precisamos cobrir temas que ainda não são devidamente tratados. Um exemplo disso que é a saúde mental, tema de absoluta importância na atualidade, ainda não tem uma norma regulamentadora própria para o assunto. Países desenvolvidos como Canadá, Japão, França, dentre outros, já possuem orientações técnicas e requerimentos legais a respeito dos fatores de risco psicossocial no trabalho. E, antes que alguém diga que isso é coisa de Primeiro Mundo, gostaria de lembrar que na América Latina, outros países já saíram na frente como é o caso da Colômbia, Peru e México, apenas para citar alguns.

Para fechar a coluna deste mês, talvez mais pesada do que outras publicadas anteriormente, faço um apelo a todos os leitores. Precisamos superar as pequenas diferenças ideológicas que, eventualmente, nos separam para focar nas grandes causas que nos unem. Em um país que mata um trabalhador a cada 3 horas ou tem um acidente registrado a cada 49 segundos, não precisamos fazer menos – precisamos fazer melhor!

FONTE: Revista Proteção